No começo de um novo ano, tempo em que passado e presente trocam testemunhos, aqui vai mais uma história, totalmente verdadeira, em que apenas os nomes são fictícios.
Anabela e Margarida nutrem uma amizade profunda que se foi desenvolvendo quando a primeira era professora da segunda; uma amizade que tem crescido e as tem mantido unidas, apesar da diferença de idades.
– Não serias capaz de me chamar apenas Anabela? – perguntou Anabela a Margarida.
– Não. Acho que não.
E a justificação de Margarida para esta resposta negativa comoveu tão profundamente Anabela, que esta lhe pediu que escrevesse o que acabava de lhe dizer. Pouco tempo depois de regressar a casa, recebeu o seguinte email de Margarida:
Em relação à nossa conversa, pouco tenho a acrescentar. Na verdade, “Professora Anabela” é como a vejo, é o seu verdadeiro “eu” para mim. Com toda a sua ternura, carinho, dedicação, companheirismo, incentivo, amizade, vocação. Remover o “professora” não é remover-lhe um estatuto, mas uma identidade, criada por uma criança (na altura, eu). Não quero perder esses sentimentos enraizados, essa identidade bonita sobre a pessoa que foi, que é, nem tão pouco desvanecer a importância que teve na formação do meu futuro.
Sim, era como se eu deixasse de chamar Avó Antónia ou Avô Luís e passasse a chamar-lhes somente Antónia ou Luís. Sinto que metade da minha história com essas pessoas, consigo, caso isso acontecesse, era apagada.
Não é o peso do nome, mas o peso da emoção.
Margarida
Anabela leu esta mensagem eletrónica com uma emoção indescritível por palavras, uma emoção reforçada pela beleza e autenticidade com que os sentimentos estão expressos, uma emoção de intensidade redobrada, pois já a sentira antes na conversa citada. Margarida tem hoje 30 anos. Foi aluna de Anabela dos 10 aos 15 anos, no 2º e no 3º ciclos. Anabela era também a diretora de turma. A relação que estabeleceu com toda a turma e respetivas famílias, tão próxima, forte e duradoura, foi-se desenvolvendo a partir de um trabalho relacional, em que a colaboração entre a escola e a família não derivaram de um projeto escrito e aprovado em reuniões, de um projeto avaliado e revisto em mais reuniões, com relatórios a comprovarem o trabalho desenvolvido e atas a atestarem a sua avaliação. Foi, no entanto, um trabalho pensado, refletido, adequado à turma, a cada aluno e a cada família. Um trabalho avaliado no quotidiano e reformulado sempre que necessário, inscrito num projeto firmado por escrito e aprovado pelos intervenientes, com uma carga burocrática mínima: a indispensável. Era um tempo em que a burocracia não esgotava o tempo e as energias dos professores, um tempo em que os papéis e as reuniões não castravam a autenticidade e a plasticidade das relações humanas. Um tempo em que era possível desenvolver um trabalho intencional, ajustado, coerente e criativo. Um tempo em que “viver” era mais importante do que “dar conta de”, sem que tal significasse ausência de prestação de contas.
“Remover o ‘professora’ não é remover-lhe um estatuto, mas uma identidade”, dizia Margarida.
Essa identidade é a identidade profissional de Anabela. Aquela identidade em que sempre se reconheceu e que viu ser respeitada e reconhecida pelos alunos e pelos pais, com mais intensidade quando era diretora de turma e podia, no desempenho desse papel, desenvolver um trabalho colaborativo de professores, alunos e famílias, em resposta às necessidades que detetava em cada uma das crianças e na turma em geral. Uma identidade caraterizada por (novamente nas palavras de Margarida) “toda a sua ternura, carinho, dedicação, companheirismo, incentivo, amizade, vocação”.
Anabela adoeceu. Não se reconhece na nova identidade que hoje é atribuída aos professores, de há largos anos desrespeitados por governantes e sociedade em geral, com horários esmagadores, com um número de turmas e de alunos que impossibilitam um verdadeiro trabalho relacional, com exigências burocráticas que se sobrepõem às relacionais que caraterizam o que Anabela considera dever ser um professor.
Os resultados do trabalho de um professor não se veem apenas no presente. Assim o comprova Margarida, que não quer “desvanecer a importância que [Anabela] teve na formação do [seu] futuro”.
Inicio o ano de 2019 com esta mensagem de Margarida para Anabela, uma mensagem que muitos professores merecem ouvir/receber dos seus (ex-)alunos. Faço-a acompanhar dos meus votos para que este seja um ano mais justo para professores e alunos; um ano mais justo para a escola pública, que tanta importância tem na formação de cada cidadão e no futuro de um país, do nosso país.
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