Os Professores E Os Falsos Argumentos
Os jornais lembraram, esta semana, que basta o voto conjugado do PSD, Bloco de Esquerda e PCP, para que o Governo seja obrigado a cumprir a suposta promessa de repor o tempo congelado total de serviço dos professores: nove anos, quatro meses e três dias. Isso pode acontecer quando o decreto alternativo do Governo – dois anos, nove meses e 18 dias – volte a ser discutido no Parlamento. Temendo algum descontrolo da situação, o primeiro-ministro António Costa afirmou que a Assembleia da República não pode votar uma lei que venha a desvirtuar uma outra, anterior, que prevalece, e que a mesma Assembleia também aprovou: a Lei do Orçamento do Estado. Há dúvidas e variadas versões sobre o impacto que a reposição integral do tempo congelado iria criar nas contas públicas, mas dificilmente ele seria inferior a 400 milhões de euros,podendo atingir os 700 milhões. O que corresponderia, a ser feito de uma vez, a um buraco repentinamente aberto no Orçamento. Costa tem, pelo menos em teoria, toda a razão, quando diz que esse rombo iria pôr em causa, não só o esforço nacional pelo cumprimento das metas do défice, mas, sobretudo, contradizer um Orçamento que o próprio Parlamento aprovou. No entanto, o primeiro-ministro parece desconhecer a possibilidade que terá, sempre, de apresentar um Orçamento retificativo – coisa que ainda não fez, na presente legislatura, e que não quer de forma nenhuma fazer – e ai é que bate o ponto! – no próprio ano em que vai a eleições.
Este Orçamento já traz em si uma medida contraditória: ao mesmo tempo que define as despesas do Estado, inclui uma cláusula, não orçamental, mas política, que permite, na prática, que elas sejam alteradas: estamos a falar da alínea que obriga o Governo a retomar conversações com os representantes dos professores, para negociar o tempo de serviço congelado. Essa medida, aliás, esteve na base do veto presidencial ao decreto governamental, unilateral, que previa, a partir de janeiro, a reposição de apenas dois anos, nove meses e 18 dias Na ótica de Belém, pois se o Orçamento exige a negociação, porque havia o Governo de decidir o tempo de reposição, antes mesmo de essa negociação ocorrer? Seria uma contradição nos própros termos – e uma violação da Lei aprovada na AR.
Por outro lado, António Costa e, sobretudo, Mário Centeno sabem bem, três anos de cativações depois, que o Orçamento é bastante elástico e pode ser moldado em função das exigências e dos desafios do ano a que diz respeito. Foi exatamente para repôr rendimentos que o Governo desinvestiu nos serviços públicos. Repeti-lo para satisfazer os professores seria mais do mesmo… Sobretudo em 2016, a política de cativações permitiu ao Governo tomar opções que levaram ao cumprimento do défice, retirando daqui para pôr ali, não gastando agora isto para gastar depois aquilo. O argumento de António Costa que, como vimos, está teoricamente correto, resiste pouco à análise da prática da sua própria governação. Ou seja, se o Governo usasse truques a que já recorreu antes, ser-lhe -ia possível repôr o tempo exigido pelos professores sem desrespeitar a lei do Orçamento.
Mas o argumento de António Costa é duplamente rebatível: é que se, por um lado, os professores não cedem um milímetro na contagem do tempo congelado, por outro lado, continuam interessados em negociar. Porque será? Só pode ser porque estarão dispostos a discutir os prazos dessa reposição! Ou seja, é possível acomodar a reivindicação com a fidelidade ao Orçamento para 2019, se ela for satisfeita de forma a distribuí-la por outros orçamentos futuros! Portanto, senhor primeiro-ministro, não é verdade que o descongelamento do tempo total desvirtue o OE de 2019. Isso depende dos prazos que o Governo tem obrigação de negociar com os sindicatos!
É claro que Costa está a fazer política. Cortar mais no investimento público em ano eleitoral, só para arranjar dinheiro para satisfazer os professores está fora de causa. Degradar mais os serviços do Estado em ano eleitoral, nem pensar. Apresentar um orçamento retificativo, muito menos. E ceder aos professores, estimulando reivindicações de outros funcionários públicos, vade retro!
Assim, o argumento do Governo, levado às últimas consequências, provocaria a sua queda. Ou seja, e retomando um velha frase de António Guterres, entre a espada e a parede, Costa prefere a espada. Ou seja, avisará: “Meus senhores, ao obrigar o Governo a ceder aos professores, a Assembleia da República está a revogar o Orçamento de Estado que aprovou. Em consequência, o Governo é obrigado a demitir-se e a pedir eleições antecipadas”. Na verdade, ninguém o obriga a apresentar um Orçamento retificativo. Aliás, António Costa é o unico interessado na antecipação do calendário eleitoral. Pelo andar da carruagem – e ainda nem passámos pelo teste da época de incêndios… – o desgaste do Governo ameaça tornar-se um calvário, até outubro.
Dito isto, há outras questões a analisar, no presente braço de ferro entre professores e Governo. A questão do congelamento de salários, a par da precipitação do tempo eleitoral, estabeleceu um divórcio irreversível entre o ministro da Educação – que, não por acaso, resistiu a todas as remodelações… – e a Fenprof. De forma estranha, aliás, é pouco discutida e pouco invocada pelo Governo a própria origem da promessa de reposição integral. É que, ao prometer o que prometeu, o Governo salvaguardou-se, fazendo depender o cumprimento da promessa de “condições orçamentais favoráveis”. A explicação para este tabu é a de que esta salvaguarda permite que se negoceiem os prazos, mas não o tempo de reposição (os nove anos e tal), visto que as condiões orçamentais, graças ao crescimento económico e à estabilização das contas públicas, abre mesmo caminho à reposição integral, desde que distribuída por alguns, poucos, anos. Ponto um.
Ponto dois, estando o Governo em várias frentes, destacando-se a dos juízes, a dos guardas prisionais e, sobretudo, a dos enfermeiros, ceder à totalidade das reivindicações da Fenprof iria provocar uma cascata de protestos gerais na Administração Pública, com quase todos os seus setores, igualmente afetados por congelamentos salariais, a exigir tratamento igual. Ora, atender a esta gente toda precipitaria a tal “catástrofe orçamental” de que falava Costa, em declarações a propósito da última discussão, na especialidade, do Orçamento para 2019.
Mais: o setor privado também viveu, e continua a viver, anos de estagnação e até de redução salarial. Para além dessa consequência da crise crónica, na contração do poder de compra, os trabalhadores do setor privado enfrentaram vagas de despedimentos, coisa que os funcionários públicos ignoram. Cereja no topo do bolo, o Governo decidiu, numa manhosa manobra eleitoralista que talvez lhe saia pela culatra, aumentar o salário mínimo dos trabalhadores da Administração Pública, deixando os do privado a chuchar no dedo. E o Tribunal Constitucional, que, durante o Governo de Pedro Passos Coelho, foi tão pressuroso a chumbar medidas necessárias de cortes na Administração Pública, em nome da “equidade” e do princípio da “confiança”, não tem nada a dizer sobre a diferença de tratamento, instituída pelo Governo, entre cidadãos do público e do privado?… Ao menos, em nome dessa mesma “equidade constitucional” que lhe serviu de argumento para tudo?…
Filipe Luís, in Visão 28-02-2019