Maria Eugénia Alves
COMO SOBREVIVER A UMA VIGILÂNCIA DE TRÊS HORAS DE MATEMÁTICA
Tem o Ministério da Educação nos últimos anos intensificado a dureza dos procedimentos a ter nas vigilâncias dos exames nacionais, de tal modo que actualmente só é permitido aos professores destacados para tão nobre missão respirar.
Verdade.
Nada mais do que isso.
Toda a vida pára.
Não se pode sequer ler o enunciado da prova que se vigia (no caso da Matemática, era igual ler ou não 😩). Não se pode falar com o colega da má sorte, apenas comunicar por telepatia (todos os palavrões são repetidos várias vezes), sinalefas de olhos revirados ou sorrisos amarelados. Não se pode responder a nenhuma questão dos alunos. Enfim, pode-se durante três horas fazer uso de alguma actividade cerebral e respirar.
Como sobreviver, eis a questão.
1. Paisagem humana
– Observar as expressões dos alunos – há de tudo, benza-os deus: o nervoso à flor da pele, o que não pesca nada daquilo., o blasé, o aflitinho, o marrão até ao tutano, o mal encarado(mal dormido?), o simpático de sorriso fácil e o que não deixa passar nada na cara.
Neste exercício, se bem aplicado, pode gastar-se uma hora. Menos mal.
2. Paisagem exterior
– Olhar para o que a janela propõe para além dela: no caso, velho conhecido o inóspito espaço de um quintal paredes meias com o pátio da escola, onde o desleixo e a sujidade tomaram conta do lugar, o que agora é positivo, pois a tralha acumulada dá pano para mangas do olhar: mesas, cadeiras partidas, máquina obsoleta de cortar relva, bicicleta, forno de churrasco, tralha, lixo, ferrugem, muita ferrugem… e árvores lindas, sobreviventes à decadência, com destaque para uma oliveira e uma pereira carregada de frutos saudáveis. A natureza é tão sábia!
Com isto, leva-se meia hora.
E chega-se ao fim da 1ª parte da prova.
A 2ª parte é mais problemática, já não há a novidade anterior, o tempo arrasta-se com a languidez do caracol. Portanto, há que enfrentar a coisa de forma mais brava, mais sensata, sobretudo. Não vale deixar-se levar por emoções primárias, revolta, angústia, desânimo… isso paga um preço elevado de stress.
3. Paisagem interior
– Meditar sobre a sua vidinha, mas as coisinhas que nos alegram: as férias em ilhas do fim do mundo, mesmo que isso não aconteça realmente, ouvir o som das ondas mansas e mornas do mar e sentir a plasticidade da areia debaixo dos pés em desenhos abstractos, nos fins de tarde de poentes de aguarela, adocicados por convívios entre família e amigos; sonhar com os concertos que iremos ver dos artistas que nos comovem; ( re)ler os livros da nossa vida em dias de luz eterna; partir para os lugares do coração…
Uma hora passa-se nisto.
4. Paisagem inexistente
– Meditação tout court.
Chegada aqui, esgotadas todas as outras propostas anteriores, e se entretanto não teve um piripaque causado por inactividade compulsiva, tem de apostar na meditação, o universo zen, a abstracção da realidade, devido à anestesia de duas horas e meia em que deixou de viver.
Esta última meia hora, se tiver a sorte de ter um(a) colega que faça o trabalho de entregar as folhas extra pedidas pelos alunos, é dedicada a não-estar, a não-ser.
Poderão dizer os mal intencionados, os chico-espertos do costume: mas queixam-se de não fazer nada? Sim, é precisamente isso. E não me cansem com essa crítica sistemática!
Já agora, isto para os alunos é dose! três horas?
Não é de estranhar que, a partir das duas, a prova começa a parecer-se com exercícios de ginástica aplicada.
