Algarve (manifesto) de Jacinto Palma Dias por Joaquim Morgado

Assisti com ternura e entusiasmo à apresentação pública do ALGARVE (MANIFESTO) de Jacinto Palma Dias. Uma incomparável manifestação que teve lugar no elegantíssimo Café Calcinha na cidade de Loulé. Dificilmente poderia tal evento ter ocorrido em local mais apropriado, pelo seu carácter clássico e intemporal tanto quanto pela plena congruência simbólica entre o imaginário que se configura na sua história e nos seus frequentadores (expressão de um Algarve outrora primário e directo porque criador e próspero) e o próprio conteúdo da obra ali apresentada. Ainda mesmo porque é um lugar onde se sente subliminarmente a presença de António Aleixo (até porque lá lhe puseram uma estátua, sentado a uma mesa à qual, em vida, certamente ele nunca se sentou), e que, por sinal, não vem mencionado no ALGARVE (MANIFESTO), talvez porque a sua manifestação seja tão completamente esmagadora, que não gera nem consente, em si, qualquer controvérsia. Ouvi então o Jacinto Palma Dias explanar o assunto da obra e vi explicada com discernimento, a importância da sua publicação.
Enternecido porque conheço o Jacinto há muito tempo e tive, ao longo desse tempo, o privilégio de ser seu amigo. Desde cedo percebi na sua produção e pontos de vista uma afinidade profunda com ideias que eu próprio alimentava e em torno das quais o espaço ideológico da minha geração procurava estruturar-se. Foi logo numa das primeiras concomitâncias em que os nossos respectivos percursos se encontraram, que tive a feliz oportunidade de conhecer o texto chamado «O Império do Sal», o qual, acompanhado de alguma literatura que o próprio Jacinto me aconselhou que lesse, me descortinou todo um novo horizonte de compreensão e avaliação da história e da essencial importância da forma de ela ser contada – com especial interesse para quem como eu por essa época procurava a nitidez dos contornos de uma identidade a que pudesse chamar de efectivamente minha.
Entusiasta porque o lançamento do ALGARVE (MANIFESTO) vem pôr fim a uma situação caricata em que a afirmação das verdades essenciais da cultura algarvia se resumia a uma circunstancial mobilização de episódios exóticos cuja colação não se furtava muitas vezes à humilhante condição de se afirmar o relevo da sua identidade mediante a respectiva representação perante um sistema de valores pertencente a outra. Pelo contrário, Jacinto Palma Dias estabelece e elenca um conjunto de factos cujo relato se constitui pela primeira vez num quadro de referência para todos os que argumentam em prol do espírito algarvio e num formidável suporte para os que procurarem produzir um pensamento algarvio dotado da capacidade de influenciar.
Desde a época em que, como referi, tomei contacto com «O Império do Sal» ficou clara para mim a existência de um eixo segundo o qual os eventos, sejam políticos, económicos, culturais, militares, antropológicos, etc., cujo relato se constitui no que chamamos história, é susceptível de ser contado de acordo com o ponto de vista de quem está produzindo esse relato – no sentido Norte-Sul (como é o caso da história oficial) como no inverso. Isso é da maior importância para a interpretação dos mesmos eventos e consequentemente na forma como isso se constitui num discurso que passa a codificar os instrumentos de auto-reconhecimento de uma comunidade ou de um povo. Jacinto Palma Dias chama a atenção precisamente para as consequências de se desapossar um povo da sua própria história, dotando-o de uma «ladainha» em que ele aparece sempre como desgraçado e vencido, com temor da estigmatização e do ridículo, que vai adquirindo a auto-condescedência de se conjugar a si mesmo na terceira pessoa. Isto é verdadeiro para o eixo Norte-Sul como o será certamente também para o eixo Este-Oeste. Seja como fôr, ficou desde aí claro para mim que se carecia de uma história que fosse contada de Sul para Norte.
ALGARVE (MANIFESTO) relata a história de um roubo, descreve e analisa um roubo prolongado. Analisa acontecimentos e factos políticos de uma forma independente daquela em que eles aparecem implantados na história que nos é contada pelo olhar setentrional, que tudo vê em função dos interesses e conflitos sediados a Norte, onde se gera e se processa o saque a que, ao longo dos séculos, foram sujeitos os povos meridionais e a partir do qual (do saque e da sua confitura intelectual) foi construída a pastilha pseudo-identitária com que foram premiados alentejanos e algarvios. Há uma afinidade natural entre alentejanos e algarvios que por vezes se traduz numa dialética opositiva, mas que não esconde nunca a determinação trágica de um calvário comum. Os alentejanos que supostamente são preguiçosos, os algarvios que são malandros e vigaristas, ainda que uns possam ser bons cantores e outros alegres dançarinos. Faz-se como nas Américas aos africanos escravizados – reconhecem-se-lhes as qualidades no que é aparentemente supérfluo para legitimar a sua destituição de tudo o que é essencial. É o se poderia caracterizar como o artifício do «Pai Tomás» tão frequentemente identificado no contexto dos conflitos raciais norte-americanos. É um processo de julgamento a priori que configura o lento assassinato de carácter desses povos e mina irreversivelmente o amor próprio com relação às suas características mais distintivas e o orgulho da sua existência colectiva e da sua história. Em qualquer momento em que, a partir de agora, estas verdades sejam produzidas, é forçoso remeter a consulta para o livro de Jacinto Palma Dias porque aí estão em detalhe e evidência as bases de como este roubo se produziu. E como o próprio manifesto começa por mostrar, não existe maior roubo do que o que consiste em espoliar um povo da sua própria história.
Vivemos agora um tempo em que num mesmo momento ou episódio, parecem confundir-se vários tempos. Passados e futuros de narrativas diversas confundem-se numa vertigem que parece escorar-se em nada mais do que uma insustentável preplexidade. É por isso tão importante conhecer o que nos trouxe até aqui, porque aí estão indeléveis as linhas por onde o sortilégio dos destinos que confluem no espírito algarvio nos irá levar. Existe, independente dos processos como cada grupo humano administra e resolve os problemas básicos da sua sobrevivência, uma unidade transcendental que confere a cada um deles um ritmo e uma clave exclusivas que lhe determinam a natureza do espírito.
A configuração actual em que se movimentam o mundo e as sociedades humanas, mostra a coexistência de dois planos de decisão – o que determina os fluxos globais e apenas permite efectividade às decisões que se possam tornar válidas em espaços, no mínimo, continentais por um lado e, por outro, o que permite realizar e desenvolver os dinamismos locais onde se podem gerir à dimensão humana os equilíbrios necessários à optimização das condições da vida concreta das pessoas. Estes têm incidência particular nos aspectos culturais e nas escolhas económicas, políticas e sociais que garantem a saúde material e psíquica das comunidades e dos seus indivíduos. É um contexto em que os estados nacionais, formados ao longo de séculos pelo prevalecimento e domínio dos piores instintos da natureza humana, deixaram não só de ter utilidade, como se tornaram fonte de atavismos e vícios que não prenunciam nada de particularmente edificante para o devir da humanidade. Pelo menos enquanto a sua lei continuar a interferir numa lógica estratégica em que eles já não cabem.
É por isso o tempo actual prenhe das mais criativas e inesperadas possibilidades e o livro de Jacinto Palma Dias tem uma importância decisiva e se constitui num sinal definidor. Constitui-se o ALGARVE (MANIFESTO) em uma esquina, uma pedra, um marco na terra do tempo, um ápice do tempo que a terra respira. Traz a base para uma nova consistência e unidade capaz de criar um pensamento que alimente o corpo da pátria imaterial, que se expressa ao nível da ideia, mas que mergulha as suas raízes na terra como uma árvore rara.
Sempre intui no Jacinto essa visão de um Algarve sentido como uma terra que, mesmo nas vicissitudes hiperbólicas dos seus périplos, ele acariciou intensamente ao longo da vida. Um Algarve enorme na sua melodia maternal, na delicadeza profunda das suas consonâncias geográficas, mas sobretudo o Algarve como uma ideia, imaterial e ágil, como uma fecundação eterna – um Algarve imortal e transcendente.

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