Há 17 anos, a Escola Pública, em Portugal, mudou radicalmente de rumo. E se
é verdade que esse novo caminho nos trouxe a renovação arquitetónica e
tecnológica de muitos edifícios escolares, também é verdade que essa mudança
significou o encerramento de muitas escolas do interior do país e um inexorável
incentivo ao despovoamento de muitas aldeias. No âmbito profissional e
pedagógico, esse vórtice reformista arrastou consigo um amplo conjunto de
direitos dos professores, sobre os quais foram lançados vários anátemas, que
geraram, contra eles, um clima social de desconfiança, de culpabilização, de
descredibilização e falta de respeito. Simultaneamente, foi ganhando corpo uma
escola caracterizada pela sobreocupação dos professores, pela inflamação do
tempo burocrático, em detrimento do tempo pedagógico, pela progressiva
desresponsabilização dos alunos, pela desvalorização do conhecimento e do
esforço, pela degeneração progressiva da exigência académica.
Estes anos de violenta mudança — invariavelmente construída sem os
professores, apesar dos professores e contra os professores — desembocaram
numa escola na qual nem professores nem alunos se reveem, onde já ninguém
se sente verdadeiramente realizado, verdadeiramente feliz. É um escola que nos
cansa, nos absorve, nos ocupa, de forma omnipresente; uma escola que nos
obriga a conviver com um crescente vórtice de funções e de tarefas; uma escola
que temos de levar para casa, quando não é ela que invade o nosso lar,
roubando-nos o sossego, o repouso, o salutar afastamento, o tempo familiar e
social; uma escola que nos impõe, quotidianamente, a frustrante sensação de
não estarmos a fazer o nosso melhor, porque há uma força que nos impele num
sentido muito diferente daquele que nós seguiríamos; uma escola que,
infelizmente, semeia e cultiva diariamente, em nós, fundamentadas dúvidas
sobre o futuro que estamos a preparar.
É desolador o quadro que, atualmente, se oferece a professores e alunos. As
novas, e infindáveis, vagas que assolam constantemente as escolas trazem
autênticas enxurradas de novas práticas, imediatamente instaladas no
quotidiano pedagógico, de novos instrumentos, que se multiplicam
descontroladamente e que são, por natureza, testemunhos de um conhecimento
mais efémero, que não teve de ultrapassar a barreira do tempo, que não teve
tempo de sobreviver às vicissitudes do esquecimento. É, em suma, a cultura da
superficialidade, dado que esta autêntica vertigem não dá a ninguém,
professores e alunos, o necessário tempo para ponderar devidamente, para
amadurecer as ideias, para aprofundar as aprendizagens. Tudo é feito no
instante e, cada vez mais, para o instante. Não pode ser luminoso o destino. É
este o miolo do mais profundo descontentamento dos professores, o fortíssimo
impulso da sua determinada e irreversível contestação.
O que contestam, então, os professores?
- este regime de gestão, nada democrático nem capaz de educar para a
democracia, bem pelo contrário, uma vez que, semeando múltiplos medos e
freguesias afetivas nas escolas, é antítese de muitos dos valores ensinados na
cidadania e nos tão queridos projetos que o ministro da Educação vai
apadrinhando; - este anunciado (e já proposto) Conselho Local de Diretores, que é a cereja no
topo do bolo deste cinzento regime de gestão, uma vez que vem reforçar os
poderes daquelas figuras que a democracia não vê com bons olhos, atribuindolhes ainda mais capacidade de controlo dos subordinados, dando-lhes ainda
mais poder discricionário; tornando-os ainda mais temíveis; - a subtração de seis anos, seis meses e 23 dias de trabalho árduo, sofrido;
- o injusto estrangulamento do acesso ao 5.º e ao 7.º escalões;
- a absurda e injusta avaliação docente, que transforma, administrativamente,
um “Excelente” num “Muito Bom”, ou num “Bom”; - uma vida inteira de trabalho precário, com contratos sucessivos, sem
vinculação, muitas vezes longe de casa, a troco de salários miseráveis, que não
dão para as despesas; - anos e anos de perda de poder de compra, enquanto acumulam trabalho,
incontáveis horas de serviço roubadas ao tempo social e familiar; - a exploração resultante das ditas horas da componente não letiva de
estabelecimento de ensino, também essas sonegadas à redução efetiva do
horário semanal em resultado da idade (a redução, agora, é apenas exploração
e sinónimo de desgaste físico e psicológico, o que é contra natura); - a generalizada falta de pessoal não docente, sobretudo de técnicos
operacionais, o que degrada a qualidade do serviço por eles prestado — de
apoio ao ensino e não só — e a própria segurança dos alunos, fora das salas de
aula; - a escassez de psicólogos e de professores de Educação Especial, em nome
de uma escola efetivamente inclusiva; - o facilitismo crescente, que torna os alunos cada vez menos ambiciosos, menos
empenhados, menos capazes de superação e menos autónomos; - a desresponsabilização crescente dos alunos, quer nas faltas (de todos os
tipos), quer no seu processo de aprendizagem; - toda a burocracia inútil que lhes tem vindo a ser imposta, roubando-lhes tempo
e paciência, desviando-os constantemente da sua missão pedagógica, do seu
labor em prol dos alunos; - a sobreocupação de professores e alunos, na escola e em casa, com um semnúmero de pequenas inutilidades que cansam, saturam, muitas vezes
inutilmente, sem a devida compensação a nível das aprendizagens; - todo este universo de fatores que contribuem para que, atualmente, já muito
poucos jovens queiram ser professores, já pouca gente queira trabalhar nas
escolas; para que haja cada vez mais turmas sem docentes, a cada vez mais
disciplinas; - esta escola que prejudica os mais pobres, os mais vulneráveis, em vez atenuar
ou corrigir desigualdades sociais, dado que transmite aos alunos o facilitismo, a
falta de ambição; dado que não lhes transmite o valor da disciplina, da
capacidade de sacrifício, do respeito; dado que não os prepara para a vida, que
é cada vez mais dura, mais exigente, mais instável e mais precária.
Professores e alunos, todos nos movemos numa espécie de mundo às avessas,
onde a nossa inteligência e a nossa autonomia contam cada vez menos.
Andamos no verso da nossa vontade e da nossa clarividência. Parecemos
marionetas de um tempo que nos banaliza. Os alunos não, mas nós, os
professores, temos uma enorme responsabilidade sobre os ombros e uma culpa
que, inclementemente, nos espera. Por eles e por nós, temos a obrigação de sair
desta masmorra, porque nós somos professores. Somos professores! Os alunos
não, mas nós temos a obrigação de lutar, de lutar até a nossas forças e a nossa
inteligência se esgotarem, para mudar este rumo, para termos uma escola
melhor, que sirva efetivamente os interesses e as legítimas expectativas
daqueles que dão pleno sentido à nossa existência. Por nós, pelos alunos, por
Portugal, temos esse dever!
Braga, 03 de fevereiro de 2023
Luís Fernando Ribeiro da Costa,Professor do Agrupamento de Escolas Mosteiro e Cávado, Braga
luisfernandoribeirodacosta@gmail.com
Lídia da Conceição Capelas Fernandes Costa, Professora do Agrupamento de Escolas de Prado, Vila Verde, Braga
lidiacfc@gmail.com